Tânia Miranda, historiadora, mestre em educaçãotania.miranda@terra.com.br
Quase 4 décadas após a sua morte e no meio das polêmicas sobre a Comissão da Verdade, é oportuno lembrar a saga do dominicano frei Tito de Alencar Lima. “Agora você vai conhecer a sucursal do inferno”. Sob essa aterrorizante declaração, foi levado em 4/11/1969, pela equipe do delegado Fleury, aos centros especializados em torturas da capital paulista, durante à ditadura militar. Fora capturado no rastro do sangrento cerco ao líder revolucionário Carlos Marighella que, numa sofisticada emboscada, acabou assassinado. A cada “não sei” – e foi assim sempre - quando interrogado para revelar nomes e pistas que pudessem levar ao paradeiro de militantes da resistência à ditadura, recebia, pendurado no macabro instrumento de tortura denominado pau-de-arara, descarga elétrica diretamente ligada à tomada. Sofreu de tudo. Viraram-no pelo avesso. Espancamento, afogamento, palmatória, tapas nos ouvidos. Seus algozes gritavam impropérios, difamações contra a Igreja, berravam que os padres são homossexuais porque não se casam. As sessões de tortura se repetiam com perguntas sem respostas. Dalí saia carregado, com o corpo marcado por hematomas, dilacerado, rosto inchado, cabeça pesada, dolorida. Jogado em pequenas celas convivia com pulgas e baratas. O mau cheiro era peça inerente ao ambiente. Sem colchão e cobertor dormia de barriga vazia sobre o cimento frio e sujo. Seu comovente relato sobre as sevícias sofridas, redigido na prisão, correu mundo, publicado em vários idiomas. Numa das inúmeras celas em que foi jogado após horas de sofrimento, encontrou, no meio do lixo, uma lata vazia. Amolou a sua ponta no cimento. Recuou da sua intenção na última hora. Em outra ocasião, com o pretexto de fazer a barba, conseguiu com o carcereiro, uma gilete. O objetivo era outro. Enfiou-a na dobra interna do cotovelo, no braço esquerdo. O corte fundo atingiu a artéria. Voltou a si em um quarto de hospital.Eram os anos de chumbo. Os militares, subvertendo máxima jurídica, apregoavam que todo réu é culpado até prova em contrário. Esse era o princípio emanado da Doutrina de Segurança Nacional. Pregavam a idéia de que ninguém confessa seus “crimes”, a menos que seja forçado. E para isso só há um recurso: a tortura. Institucionalizou-se esse crime. Libertado, na condição de bandido, o sofrimento o acompanhou. É melhor morrer do que perder a vida; a loucura está me dominando, confessava frei Tito. Seus últimos meses de vida foram marcados por alucinações. Ouvia as vozes dos seus torturadores, via o delegado Fleury, capitão da tortura, seguindo-o obstinadamente. Alternava crises de choro com longos períodos de profunda apatia.Diante da confidência de frei Tito - já não creio em nada, nem Cristo, nem Marx, nem Freud – seu colega dominicano frei Betto, que também conheceu os horrores das prisões da ditadura, comenta: as três vertentes da cultura contemporânea atravessavam como línguas de afiadas espadas, o coração atormentado de frei Tito. Jesus fora sempre a razão fundamental de sua vida e de sua luta; mergulhado no caos interior, ele provava o sabor amargo do cálice e, como o jovem carpinteiro de Nazaré, sentia-se abandonado pelo Pai. Marx o introduzira na racionalidade política, na crítica ao capitalismo, fornecendo-lhe bases teóricas à sua subjetividade atribulada, a existência cruelmente amputada de sua essência. Freud parecia incapaz para dissecar seu inconsciente torturado, introjetado de generais brasileiros, de oficiais da Oban, de policiais do Deops, da onipresença do delegado Fleury. Todos os recursos da ciência freudiana dissolviam-se em meio a seu desespero interior.Em 10/8/1974, na zona rural francesa, o corpo de frei Tito foi encontrado, balançando pendurado por uma corda nos galhos de um álamo.
fotos daniel de andrade simões
Alguém descreveu esse momento: um estranho silêncio pairava sob o céu azul do verão francês, envolvendo folhas, vento, flores e pássaros. Nada se movia. Do outro lado da vida ele encontrara a unidade perdida. Frei Tito foi sangrado na carne até que a dor atingisse a sua alma. Encarcerado, torturado, banido, atormentado até a morte. Vencestes, frei Tito, os limites da vida. Quem responderá por tua morte?
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