segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Memória, História, Ditadura e Democracia por Tânia Miranda

                                        João Amazonas, dirigente do PCdoB - foto daniel de andrade simões


Tânia Miranda, historiadora, mestre em educação
tania.miranda@terra.com.br


Pautada na concepção positivista, a historiografia brasileira tradicional privilegia a ação de heróis nacionais em detrimento de outros sujeitos históricos. Preservam-se as igrejas barrocas, os fortes militares, as casas-grandes, os sobrados coloniais. “Esquecem-se” das senzalas, dos quilombos, das vilas operárias, dos cortiços. A Inconfidência Mineira e os seus personagens são exaltados. Ignora-se a existência de João de Deus, Manoel Calafate, Francisco Sabino, personagens de dramas que se desenrolaram pelas ruas, ladeiras e praças de Salvador. Um passeio para conhecer os nomes de avenidas, ruas, escolas, hospitais e uma rápida olhada nos monumentos que decoram as praças de nossas cidades é aprender uma história às avessas.


A memória histórica constitui uma das mais fortes e sutis formas de dominação. A institucionalização da memória oficial serve como legitimadora e justificadora do projeto político de dominação. Tradicionalmente, são os porta-vozes de grupos ou classe social hegemônica que contam a história do seu jeito, selecionam o que deve ser dito, os agentes sociais que devem ser apagados da memória social. Impondo a sua visão, imortalizam aqueles que serviram aos seus projetos e excluem líderes de movimentos de contestação e resistência. São os povos sem história. Os vencedores, ao mesmo tempo em que intervêm nos acontecimentos, criam as condições para a sua própria dominação. Procuram ocultar as permanências e as rupturas, as diferenças e as contradições das relações sociais, aquilo que pode significar ameaça à perpetuação do seu poder.

É comum destruir os apoios da memória e substituir a lembrança pela história oficial celebrativa, cujo triunfalismo é a vitória do vencedor a pisotear a tradição dos vencidos. A história geral descreve um processo único e evolutivo, marcado por grandes eventos, passando a ideia do progresso como direção inevitável. A história do Brasil apresenta uma visão olímpica de biografias nacionais definitivas e intocáveis.

Mas nem tudo é permanência. A partir da década de 1980 – marco de mudanças – inaugura-se nova fase para a historiografia brasileira. Exemplo foi o tombamento da Serra da Barriga, local onde se desenvolveu o maior quilombo da história do Brasil – Palmares – e o tombamento do Arraial de Canudos, onde ocorreu um dos mais importantes movimentos populares da história nacional. Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio, no livro Dos filhos desse solo – mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar: a responsabilidade do Estado, revelam que a ditadura decidiu fazer uma “limpeza” na área da Guerrilha do Araguaia a fim de apagar os vestígios de que algum dia ocorrera naquela região um movimento guerrilheiro. Imbuído do espírito de manter no anonimato a memória não oficial, o prefeito de Xambioá (TO), Richard Santiago Pereira, do antigo PFL, mandou destruir, em 2005, um símbolo da Guerrilha do Araguaia: um jardim, na entrada da cidade, onde estavam espalhadas as cinzas do lendário João Amazonas, dirigente do PCdoB, participante da guerrilha.

Dentre inúmeros casos, lembro o de Valquíria Afonso Costa, tida como desaparecida política em 25/12/1973, após prisão e morte sob tortura nos porões da ditadura militar, recebeu homenagem de uma cidade do interior de Minas Gerais seu estado natal. Seu nome foi dado a uma antiga rua. Exemplos internacionais são incontáveis. Com paradoxos. Heróis em seus países são criminosos de guerra nos países oponentes.

Devemos à democracia a oportunidade de discutir a memória histórica, repensando-a coletivamente, desafiando o instituído. Os 50 anos do golpe civil-militar de 1964 nos trazem um espaço bem propício para ações de revisão histórica, dando voz à memória coletiva, tirando do silêncio importantes atores sociais, evitando nas novas gerações a amnésia social que tanto compromete a constituição de identidades individuais e coletivas.  O trabalho com a memória, e suas relações com a história e o tempo presente oferece chaves para releituras do passado. E é nessa perspectiva que são bem-vindas iniciativas que oferecem aos nossos estudantes a oportunidade de ouvir a voz de excluídos da história.









Um comentário:


  1. É mais fácil esquecer o sofrimento ou a alegria? Necessitamos reter ambas para sobreviver.

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