terça-feira, 11 de junho de 2013

Mia Couto, no discurso da entrega do Prêmio Camões

fotos daniel de andrade simõe
 
 
 
 
"O próprio Camões, que teve uma vida infeliz, desgraçada, morreu pobre, pensando que sua obra era desvalorizada. Portanto não muda nada, quer dizer, eu fico muito feliz, isso tenho que confessar, é uma grande felicidade, mas não altera em relação a grandes coisas ou à razão porque eu escrevo, porque sou feliz, não muda nada. Cada escritor tem um universo próprio que não pode ser comparado com outro. E longe de mim comparar-me com Camões, que é uma figura lendária, uma figura que marca quase toda a fundação de toda a literatura em língua portuguesa."

Num discurso de cerca de cinco minutos, Mia Couto considerou que os povos falantes de outras línguas nas nações lusófonas têm sido esquecidos, falou dos preconceitos que permanecem sobre os outros e fez uma referência à luta pela independência de Moçambique.

Mia Couto não quis dedicar o prémio, mas sim partilhá-lo com familiares e amigos, com o seu editor e em especial com o seu pai, Fernando Couto, que morreu este ano. 

"Foi ele que me ensinou, não apenas a escrever poemas, mas a viver em poesia. Este prémio pertence a esse sentimento do mundo que ele me legou como uma sombra, que resta mesmo depois de tombar a última árvore", disse.

 
"Partilho, finalmente, este momento com a gente anónima de Moçambique, essa multidão que fabrica a nação viva e sonhadora que venho celebrando desde há mais de 30 anos", completou. 

Segundo Mia Couto, embora muitos moçambicanos não saibam escrever ou sequer falar português, são co-autores dos seus livros e iluminam a sua escrita.
 

"Toda esta nação de gente tão diversa faz-se aqui representar pelo embaixador de Moçambique, meu compatriota Jacob Jeremias Nyambir, a quem eu saúdo especialmente, 
e também como companheiro da luta de libertação nacional pela independência de Moçambique", referiu. 

Na sua intervenção, Mia Couto falou da passagem de Luís de Camões pela Ilha de Moçambique, fantasiou sobre as possíveis paixões do poeta português nesse lugar e sobre a hipótese de este ter deixado descendentes que vivam hoje nas praias do Índico. 

"Falei da Ilha de Moçambique enquanto metáfora desta constelação de nações que falam português, mas que não são faladas de igual maneira por esse idioma. Esquecemos, por vezes, que essas nações integram povos que falam outras línguas, que vivem outras culturas e outros deuses. Somos, enfim, produto de uma história que se fez só por metade. Da narrativa do nosso passado, faltam a voz e o rosto dos que, afastados da escrita, não puderam registar outras versões dos nossos encontros e desencontros", criticou. 

O escritor moçambicano acrescentou que "talvez os escritores de hoje possam resgatar as vozes que ficaram esquecidas e ocultas". 

Ainda a propósito de Camões, lembrou que "Os Lusíadas" obtiveram um parecer favorável da censura da Inquisição, apesar de algumas reservas por causa das referências aos deuses pagãos. 

"Estamos longe desses tempos, mas não sei se estamos tão afastados dos desconhecimentos, preconceitos e medos sobre os outros, e sobre os deuses que esses outros se sonham. Não temos a censura da inquisição, mas temos outras censuras sem nome, que nos patrulham o pensamento e nos domesticam a ousadia da mudança, essa mudança que Camões tanto cantou como sendo a substância da vida e do tempo", considerou. 

No final do seu discurso, Mia Couto declarou: "Todos sabemos o que está ainda por cumprir do vaticínio que Jorge de Sena atribuiu a Luís de Camões, e que dizia o seguinte: que da ilha rasgada pela história uma única ilha se fizesse, sem separação de miséria e de luxo, onde todos de igual modo pudessem da felicidade fazer morada"



 

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