terça-feira, 3 de julho de 2012

Rui Patterson autor de Quem Samba Fica ... sobre o tormento de um ex-preso político

Cartão de visitas de daniel na década de 1980 no Coojornal-cooperativa de jornalistas do Rio Grande do Sul


Conheci Daniel de Andrade Simões em 1969, quando preso no Forte do Barbalho, na cela ao lado da minha. Sujo, cabelo em desalinho, seminu, recuperava-se das torturas. Simpático, tratava com humor a situação em que se encontrava. Funcionário da Petrobras, utilizava o horário do almoço para imprimir, nos mimeógrafos da empresa, o manifesto do partido comunista de Marx e Engels, panfletos contra a ditadura. Apanhado em flagrante em 1968, foi preso e respondeu a inquérito policial militar. Recrutado por Ubiratan de Castro Araújo, Nemésio Garcia e Marie Hélène Russi para integrar um grupo dedicado a luta armada numa dissidência do Partidão, saiu-se bem na sua primeira tarefa: natural de Rio Real, atuaria no setor camponês e operário no entorno de Alagoinhas. Possuía afinidades com os trabalhadores da região, aí tentou montar a sua base. Lavadeiras e camponeses que passavam pelo seu barraco o denunciaram à polícia, quem sabe imaginando coisas terríveis a respeito de um rapaz solteiro nas proximidades de um riacho. A Polícia Militar da Bahia maravilhou-se ao encontrar obras políticas, panfletos, armas dinheiro e munições, começando o festival de pancadas no próprio local da prisão. Em seguida foi levado para a central de torturas do Quartel do Barbalho. Concluído o inquérito, foi transferido para o Quartel de Amaralina, onde as celas eram localizadas num nível que permitiam que a maré chegasse até o piso. A ditadura inaugurava na Penitenciária Lemos Brito, a Galeria F, esvaziada dos presos comuns, destinando-a aos presos políticos. Daniel foi um dos seus primeiros prisioneiros. Liberado, foi abrigado por minha mãe, enquanto organizava a sua saída para o Rio e posteriormente para o Chile. O golpe de Pinochet obrigou-o a nova fuga, agora para a França. Lá, aprendeu fotografia na Universidade de Vincennes criada por Daniel Cohn-Bendit. Nome ligado à efervescência política de 1968. Sucessivamente empurrado, por razões geopolíticas, de um para outro dos países nórdicos, fixou-se em Moçambique, acolhido pela FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) e Mia Couto, poeta e escritor, que lhe atribuiu a tarefa de ser um dos fotógrafos oficial do presidente Samora Machel. Com a anistia, retornou à Bahia, obtendo na Justiça do Trabalho o reconhecimento dos seus direitos. A Petrobras concordou em pagar-lhe as parcelas rescisórias, enviando-o ao INSS para aposentar-se. Há uma sutil diferença entre “ser encaminhado” ou “ser enviado” ao INSS. Na primeira, as portas se abrem com recomendações expressas da empresa para que promovam a aposentadoria: na segunda, o beneficiário tem que bater às portas do INSS. Este decretou que, para aposentá-lo, seria preciso publicação oficial da anistia. Procedimento desnecessário, tal atitude faz parte das chicanas da burocracia para negar direitos a ex-presos políticos. Como é impossível ir ao Diário Oficial solicitar a publicação da aposentadoria, recorreu ao judiciário. Ganhou. A Petrobras, em petição expressa, reconheceu a derrota, mas Daniel nada recebeu.Processo administrativo foi aberto na Comissão de Anistia requerendo indenização por ser ex-preso político. Negado, sob o argumento de que a Petrobras e o INSS declararam que ele havia sido indenizado. O recurso oposto contra essa decisão pende de julgamento no Pleno da Comissão. A situação de Daniel é semelhante à de multidões de indignados atraídos pelo apelo de igualdade e justiça. A memória da ditadura não foi digerida e renovada pelos que viveram as suas atrocidades. Quem passou por ela tem marcas gravadas em seu código genético, permanece atormentado por lembranças de um tempo em que era preciso sussurrar, esconder e mentir, como lembrou, diante de seu inquisidor, a presidenta Dilma Rousseff.Após 30 anos de luta jurídica em tribunais trabalhistas, federais e administrativos – tempo em que Daniel permanece sem receber indenização, pensão, benefícios de aposentadoria - o processo, finalmente, encontra-se em fase de execução numa das Varas Federais de Salvador. A luta de Daniel está chegando ao fim. Embora doente, continua lutando para comemorar o desfecho que lhe assegura o direito basilar de ser aposentado e indenizado, pondo fim a 44 anos de tormentos.
ruipatterson@terra.com.br

A Tarde de Salvador Bahia




2 comentários:

  1. Dois ex-guerrilheiros cabra-macho da porra! Do P.O.R.R.A - História da porra! Artigo da porra!
    Parabéns, porra!

    ResponderExcluir
  2. Nas contas feitas desse deve e a ver, me credito uma saudade doce, de tudo aquilo que eu quis que fosse, de tudo aquilo que não pôde ser.

    ResponderExcluir